O serviço público de educação é um pilar essencial e imprescindível de uma democracia que, por definição, garanta a igualdade de oportunidades e o desenvolvimento integral de uma sociedade moderna.

A ciência de Rómulo de Carvalho, uma paixão nada fria

Máquina do Mundo
“O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo."

António Gedeão, in “Máquina de Fogo”
 


Ousou um dia o autor destes “Cadernos de Iniciação Científica” completar o genial trabalho de Camões em “Os Lusíadas”, ao escrever, com 11 anos, o começo do canto XI para continuar um poema épico que considerava ser a História de Portugal em verso. Ficou por aqui. Anos mais tarde, Rómulo de Carvalho (1906-1997) mostra o quanto a ninfa de Camões, Tétis, lhe havia também revelado sobre os segredos da “máquina do mundo”. Fê-lo magnificamente: a sua obra como professor e pedagogo de ciências físico-químicas são o mar de palavras escritas e tormentas de dedicação que atravessou para que lhe fosse possível divulgar na esfera dos homens o funcionamento do Universo em que existem. Por isso, o livro em apreço informa-nos sobre a ignorância que temos de conseguir vencer para alcançar a sabedoria.
Em “Cadernos de Iniciação Científica” encontramos uma compilação de dezoito cadernos com dezasseis páginas cada, publicados entre 1979 e 1985, que tratam de matérias fundamentais do domínio da Física, sem que a sua apresentação e explicação se encontrem desprovidas da necessária roupagem contextualizante da história da Ciência. Rómulo de Carvalho movimenta-se com mestria entre os temas com carácter mais filosófico, como os capítulos/cadernos intitulados “A Descoberta do Mundo Físico” e “A Experiência Científica”, e os temas de academismo disciplinar puro, como “Moléculas, Átomos e Iões”, “O Peso e a Massa”, “A Pressão Atmosférica”, “Magnetismo e Electromagnetismo” e “Radioactividade”. Não faltam também os assuntos associados ao corpo de conhecimentos que sucedeu a Física e com ela mantém uma peculiar proximidade: a Química. “A Estrutura Cristalina”, As Reacções Químicas”, A Composição do Ar” são disto exemplo.
Não é respeitada nenhuma programação oficial, nem tão pouco se procura uma erudição nas palavras e nas explicações. É isto que torna alguns livros intemporais, pois nestes a verdade dos factos e das ideias não se programam em função dos tempos, nem se escondem por detrás da subjectividade da mente humana. Rómulo de Carvalho conhece-o, e tira-lhe proveito com a construção de um texto acessível, embora rigoroso no propósito científico, destinado «especialmente aos jovens estudantes dos 9 aos 15 anos».
As notas históricas, o esclarecimento de dúvidas na utilização da linguagem científica e conceitos associados, as imagens e explicações das montagens experimentais e dos resultados obtidos por cientistas  portugueses e estrangeiros notáveis, tal como os conselhos destinados a alunos e professores, polvilham este livro de uma ponta a outra. Repare-se na simplicidade com que o autor aconselha os alunos relativamente ao estudo da Energia, uma matéria quase sempre árida e tenebrosa para a maioria dos alunos de ciências (será que apenas Newton ou Einstein a preferiram?): «O texto deste Caderno deve ser lido sem pressas. Propositadamente se apresenta dividido em 3 partes (I, II, III) aconselhando-se o jovem leitor a fazer intervalos entre a leitura de cada uma das partes e só passar à seguinte quando lhe parecer que já assimilou convenientemente a parte anterior.». Há muito que esta ideia se encontra arredada de todos aqueles com responsabilidades na educação nacional. Para este professor, também historiador da ciência e da educação, e poeta (sob o pseudónimo António Gedeão), o ensino das competências não interessa, mas sim a transmissão do Conhecimento, que é o factor imprescindível à mudança das mentalidades e ao avanço das sociedades. O resto, a vida faz.
O espírito racionalista de Rómulo de Carvalho é enxuto e a ciência com que incentiva o gosto da Física entre os alunos é dedicada. «Ser Professor tem de ser uma paixão - pode ser uma paixão fria mas tem de ser uma paixão. Uma dedicação.», dizia. 
Portanto, alunos e professores leitores deste meu texto de apresentação, toca a mostrar e a desenvolver curiosidade científica com a leitura de páginas de amor pedagógico e didáctico pela transmissão do conhecimento científico aos outros. Não esperem encontrar um livro lúdico, mas um livro inteligente. Não promove a brincadeira gratuita e perdedora de tempo, sendo antes criador do prazer que conduz ao desenvolvimento permanente da curiosidade científica. Aos professores, digo para analisarem como se comunica e, aos alunos, digo para conhecerem o que se comunica.
Apesar de tudo, e na minha opinião, a maior virtude deste livro está em conseguir aproximar de nós os conceitos e as explicações científicas sobre a realidade envolvente, nem sempre visível ou palpável, do humanismo que envolve a construção do edifício científico por homens e mulheres integrados num período histórico. É por isso que nele tanto se podem encontrar Benjamin Franklin com o seu papagaio de seda tentando descobrir a origem dos relâmpagos, como uma referência à escultura “O Pensador”de Rodin, ou ainda, a descrição da teoria do flogisto acompanhada das experiências de Lavoisier, ensinamentos sobre factores variáveis e constantes, gráficos e tabelas, a insólita experiência de Magdeburgo com o auxílio de cavalos, o poeta romano Lucrécio e o seu poema sobre a natureza das coisas, o famoso número de Avogadro, uma página do caderno de notas de Madame Curie, o funcionamento da bússola, Alexandro Volta a mostrar a pilha eléctrica a Napoleão Bonaparte, ou a descrição de um processo simples de aproveitamento da energia solar para aquecimento da água e a enigmática frase do filósofo Protágoras, que um dia afirmou ser o homem a medida de todas as coisas.
Poderá acontecer que vos apresente outro livro do professor Rómulo de Carvalho. É fácil, ele escreveu vários e eu tenho prazer em lidar com uma “ciência sem barreiras”, típica de uma educação escolar científica aliada ao gosto literário. Leiam este livro, aproveitem um intervalo!
Links relacionados:  
Exposição "António é o meu nome”, inaugurada em 2006 na Biblioteca Nacional por ocasião do centenário do nascimento de Rómulo de Carvalho/António Gedeão. 

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