enquanto acreditares no poder do teu Amor.
Hoje, o meu primeiro pensamento voltou a ser para ti, Valentim. Tudo em redor me parece um princípio de mundo… Não há mais ninguém, toda a gente partiu, nem sei ao certo para onde. E este momento será uma prenda para relembrar o resto da vida. E a vida não passa de umas horas que os «deuses» nos dão, a nós simples mortais que somos. Acho que esta sensação de «vazio» é um claro reflexo do que irei viver hoje, dia 14 de Fevereiro, o teu dia.
Há alguns meses, numa carta dirigida ao teu amigo celestial, São Martinho, escrevi que, na Escola Secundária de Cacilhas–Tejo, tínhamos a pretensão de representar uma peça de teatro em tua homenagem. Conseguimos. Toda a turma L, do Curso de Educação e Formação de Adultos (EFA) B3 e a respectiva equipa pedagógica (Domitila Cardoso; Laura Mascarenhas; Mário Azevedo; Mónia Martins) estiveram envolvidas. Assistiram à peça cerca de cem pessoas, entre as quais familiares, professores, alunos de Área de Projecto do 12º ano, assim como, formandos e ex-formandos das turmas EFA (P; Q; R; S; V). A subdirectora da escola, Dra. Lurdes Gomes, iniciou a sessão, congratulando-se pela iniciativa. Seguidamente, coadjuvada pela adjunta da Direcção, Dra. Maria do Céu Santos, procedeu à entrega de pastas, assim como de um pequeno texto, da autoria do Professor José Cunha, aos formandos dos cursos que concluíram o nível secundário no ano de 2010.
Foram momentos mágicos e inesquecíveis. Não imaginas… Tivemos em cena o São Valentim (José Pais), centuriões (Rosa Rosa e Deolinda Neves), soldados imperiais (Noemy Andrade e Idalina Spencer), o Imperador Cláudio II (Rufina Sacramento), aquele que decretou a tua prisão, o teu amigo São Mário (Mª Teresa Gomes) e um dos casais de namorados (Carlos Antunes e Madalena Silva) que tu, em nome do amor, casaste em segredo, arriscando a vida. Na nossa peça participaram, também, uma apresentadora (Mª de Jesus), uma narradora (Gisela Vaz), uma técnica multimédia (Carolita Lobito), um formando (António Miguel) responsável pelos adereços e uma magnífica assistente (Joana Madeira, ex-formanda EFA S). Foi declamado pela formanda Emília Dias um poema em teu tributo. Na parte final, a assistência acompanhou os formandos (conduzidos pela adulta Fátima Fernandes), entoando a canção «Cinderela», de Carlos Paião. Esta música foi seguida à viola pelo formando João Henriques (EFA O). Não posso esquecer, também, o Cupido que contracenou em duas fases distintas: uma no século III, pela formanda Ana Paula Santos, e outra na actualidade, pela formanda Fernanda Cebola. Contou-nos muitos dos seus segredos. Ficámos a conhecer alguns aspectos do seu percurso de vida, alguns dos seus feitos. Ficámos a saber o porquê de se ter mantido criança, assistimos à revelação do seu amor «secreto» que, por sinal, estava presente e, por fim, teve ainda tempo para disparar algumas das suas setas e com elas fazer alguns «estragos». Um casal de «trombudos» da plateia que o diga…
Sabes Valentim, a «tua» Júlia (Fátima Frade) esteve em palco. Não ficava bem se não te contasse. Omitir esta parte seria como não contar-te toda a verdade, e a última coisa que quero é mentir. Foi visitar-te à prisão e deparou-se com a tua ausência. Julgava-se morta. Chorou muito e sempre e mais. Levantou os olhos e deixou cair, por entre os dedos, a esperança que não tinha, como se fosse areia quente, ansiosa por voar. As cores misturam-se todas, deslizaram entre as paredes e o chão do auditório, gritaram pelo teu sangue, pelo negro do pensamento e da dor, das cicatrizes recentes. Nessa altura, apeteceu-me sair dos bastidores, entrar em palco, para lhe mostrar, também, o azul e o verde. Sorriu de uma forma triste para a amiga (Adélia Lopes). Como eu pensei que já não sabia sorrir, e falou de janelas que não abriam, de portas que não fechavam e de vidros espelhados partidos. Parou, por fim, no limite da realidade, e sem alento desapareceu levando consigo o bilhete que tu lhe escreveste. Reconheço que estou a «hiperbolizar» um pouco. Ou melhor, acredita que nos ensaios as coisas assumiram esta dimensão. Mas com o público presente é mais difícil expressarmos os sentimentos. Acho que faz parte da natureza dos mortais ter dificuldade em assumir os sentimentos…
Oh Valentim, por vezes, é mais fácil acreditar que os muros acabam por ruir, um dia, e com eles tudo aquilo de que nos escondemos. Bem sabes do que falo, Valentim. Como escreveu Sophia de Mello Breyner: «O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais». Mas a santidade Valentim, essa, está apenas ao alcance de poucos, exige um trabalho severo, sem tréguas, uma disciplina rigorosa e constante. É uma espécie de um «imperativo» ético e moral que cumpriste de uma forma exemplar… A propósito, ontem, depois da peça, saí para conversar com uma amiga. Falei-lhe de ti. Ou melhor, da tua «pessoa virtual» e da tua santidade. Ficou surpresa, pois em tantos anos, nunca me tinha dado para o mundo da virtualidade e muito menos para a santidade. Enfim, diagnosticou que estou a sofrer de uma «viagem» ao passado, que quero voltar a reviver sentimentos no «palco» e na «vida». Na verdade, não sei o que diga, Valentim. Por agora, sei apenas que tenho a secreta esperança de, durante este ano lectivo, conseguirmos encenar, com estes fantásticos formandos, mais uma peça, desta vez sobre o Japão. Nesta altura, o meu pensamento é invadido por imagens, por sons, por cores, por cheiros, por sabores do Oriente. E tudo isto sem nunca lá ter ido. Como alguém, conhecedor do território, escreveu: «Muitas horas de viagem nos separam. Muitos séculos de História nos unem.»
Os meus pensamentos andam à deriva, as palavras ainda mais, mas tudo isso é vago e não interessa, já deixei de pensar e de me interessar por descobrir algo de racional…Cansei-me. É claro que continuo a lutar por vir à tona, por ser superficial. Mas não adianta muito. Quando a madrugada acontece, todas as fronteiras se anulam, todas as distâncias desaparecem. É como um manto negro que concilia os contrários. Eu sei que é pura ilusão, Valentim… Estes momentos são meus e ninguém mos pode tirar. O resto é encenação. Bem sei que no teatro da vida deve haver apenas uma personagem principal… Volto a olhar para umas fotos e procuro compreender o que vejo. Mas olho, olho e nada. Enfim, não consigo defini-la. Agora, sei apenas que é uma «guerreira» de uma «pátria com chão», uma «mãe – coragem» codificada. Mesmo sem a conhecer de verdade, ou será mesmo por isso, considero-a indescritível…
Estou exausto…Vou até à varanda olhar a lua. Sei que ela teima em continuar branca. Todo este cenário, até o frio agudo que me gela a face, configura um prenúncio de um fim, de uma morte anunciada. Sabes, hoje, sei que não foi o negro à nossa volta, nem o vermelho que nos magoou os olhos. Foi o branco, o vazio do que ficou por dizer. E eu acreditei que sempre é mesmo eterno, que nunca fugimos de quem gostamos. Não havia segundas intenções, nem sentimentos por definir, e dói ainda mais por não a conhecer. É o abismo que se estende até mim, que engole o que grito e a protege do meu querer. É claro que as palavras não mudam a realidade, apenas a conseguem tornar menos dolorosa. Vou deixar as janelas abertas para que os pensamentos e as memórias fujam... Uma das que certamente não irá fugir é a da surpresa que a turma me fez, desta vez, oferecendo-me uma figura do Cupido assim como nunca poderei esquecer as palmas e os risos do teu público …
Bem, por agora, chega Valentim! Hoje, em tua homenagem ou talvez não, a música escolhida para ouvir antes de dormir será «Where the wild roses grow», cantada por uns tais Nick Cave e Kylie Minogue.
Pode ser que amanhã, ao acordar, consiga recordar o sonho e, assim, conhecer o rio onde nascem essas rosas… Espero que, um dia, me deixes lá chegar. Como escreveu Miguel Torga «O homem é, por desgraça, uma solidão: nascemos sós, vivemos sós e morremos sós.»
A solidão pode ter um eco triste e vazio. Como diz a letra da música «Toda a beleza deve morrer».
Bons sonhos para ti, Valentim.
José Lourenço Cunha
Silvestre Ribeiro
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